sexta-feira, 15 de junho de 2012

Como funciona o mangá.

Raios com potência nuclear cortam os céus iluminando a cidade. Emanações de gelo congelam o ar. Labaredas de fogo varrem a paisagem. Teias gigantescas são arremessadas contra o território inimigo.

Uma cápsula de energia impenetrável protege os heróis ocidentais de um possível contra-ataque. Do lado oriental, imóveis, os guerreiros aguardam o ataque adversário. Em silêncio, relembram todos os movimentos que compõem seus golpes mais poderosos. Concentrados, manipulam a energia que permeia o universo não só para bloquear os ataques. Usam-na para aumentar sua força interior a fim de não temer seu destino. E partem para a ofensiva sem sequer abrir os olhos.

Se essa batalha imaginária representasse a luta pela conquista de leitores no mundo todo entre as histórias em quadrinhos ocidentais e as japonesas, os mangás, quem estaria ganhando? Em um primeiro momento, que aconteceu por volta dos anos 50 do século 20, ajudados por uma poderosa indústria cultural, encarregada de exportar a cultura americana, os quadrinhos ocidentais ou comics invadiram o mundo de forma avassaladora. Sem dar a menor chance de reação a qualquer oponente, conquistaram milhares de leitores e influenciaram, com sua estética, os autores de quadrinhos de todo o mundo, inclusive os japoneses.

Astro Boy  Foi assim com o desenhista japonês Osamu Tezuka, o pai do mangá moderno. No início dos anos 60, ele incorporou alguns dos elementos dos quadrinhos americanos ao mangá japonês. Mas, fazendo jus à sabedoria milenar dos guerreiros de seu povo, aprendeu com o que viu e ganhou força. O que surgiu como resultado estava longe der ser apenas uma cópia. Ele criou algo novo, com características próprias que passaram a diferenciar os quadrinhos japoneses dos comics e de outras produções estrangeiras dali pra frente.

Dragonball  Ao produzir personagens com olhos imensos, inspirados nos desenhos de Walt Disney, trouxe para o rosto a “responsabilidade” de expressar as emoções e os pensamentos dos personagens. Ao lançar mão de técnicas cinematográficas, criou enquadramentos inusitados e privilegiou o movimento. Com ênfase na imagem ao invés do texto, como reflexo da contemplativa tradição oriental, produziu uma estética inovadora. Ao abordar temas não só de interesse para as crianças, abriu caminhos para que toda uma geração de autores japoneses criasse variações. Inovações não só gráficas, como também temáticas, que conquistaram públicos cada vez mais amplos e variados. Fenômeno ainda sem paralelo no Ocidente.

Com uma enorme força no Japão, que se transformaria no maior mercado editorial do planeta, o mangá iniciou então sua saga rumo aos territórios estrangeiros. Disfarçado de mero entretenimento infantil, invadiu, a partir dos anos 70, os lares em todo o mundo, em forma de insuspeitáveis desenhos animados para crianças, os animês. Ao conquistar gradativamente os corações e mentes infantis, acompanhou o crescimento dos pequenos espectadores, que chegaram à adolescência já seduzidos pela forma japonesa de contar histórias. 
 
O mangá ganharia mais fãs nos anos 80 ao penetrar em território estrangeiro com produções, tanto impressas quanto animadas, com temas mais elaborados e voltados para o público adolescente e adulto. Estratégia que, incorporada por uma desenvolvida indústria de entretenimento no Japão, fez os animês explodirem mundo afora na década de 90, surpreendendo como nunca os super-heróis ocidentais. Personagens aparentemente invencíveis que agora tentam, a todo custo, não só assimilar o golpe como também desvendar o segredo do qual emana a força do mangá.

Akira  Estética que em pleno século 21 contribui para uma verdadeira invasão da cultura pop japonesa no Ocidente. Território ocupado, onde a cada ano milhões de revistas de mangá são vendidas. E as mais bem-sucedidas se transformam em animês, que provocam uma verdadeira febre entre crianças, adolescentes e adultos. Histórias e personagens que têm o poder ainda de “transmutar-se” em videogames, brinquedos, figurinhas e todo tipo de produto que a imaginação e o marketing puderem criar. Poder que, pelo menos por enquanto, parece deixar a milenar arte guerreira japonesa em grande vantagem.


Os quadrinhos japoneses, assim como em outras culturas, utilizam texto e imagem para contar uma história. Os primeiros registros desta forma de arte no Japão são do século 11, quando o monge zen-budista Kakuyu Toba imprimiu, em rolos de papel de arroz, uma sátira com personagens da época. Durante os séculos seguintes, outras produções do mesmo estilo surgiram por todo o país e tornaram-se populares. Mas o termo mangá, que quer dizer “desenhos irresponsáveis”, só surgiria no século 19, criado por Katsushita Hokusai, gravurista de uma tipo de arte feita em madeira chamada "ukyiyo-e". A partir de 1814, ele produziu uma obra composta por 15 volumes com charges de conteúdo político e social, chamando-a de "Hokusai Manga".

 Death Note  O termo mangá, no entanto, só foi usado para designar histórias em quadrinhos (com quadros seqüenciais, personagens fixos e histórias em série) em 1853, pelo desenhista Rakuten Kitazawa. Ao lançar o que seria considerado o primeiro exemplar do gênero, a “Togosaku to Mokube no Tokyo Kenbutsu” (“A Viagem de Togosaku e Mokube a Tóquio”), resgatou a palavra e a tornou conhecida. A partir de então, influenciados por jornais e revistas estrangeiros, principalmente europeus, toda uma geração de desenhistas japoneses passou a produzir caricaturas sobre a sociedade e os costumes da época. Atraíram com isso mais leitores e tornaram os mangás bastante populares já nos anos 20. Na época, além de histórias para adultos, os quadrinhos passaram a abordar também temas infantis.

X  Mas o surgimento do mangá, com os elementos que o caracterizam hoje, só ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial. Época em que os Estados Unidos, o grande vencedor do conflito, exportaram não apenas capital para a reconstrução dos países destruídos pela guerra. Disseminaram também produtos da cultura americana, entre eles os comics, através da nascente indústria cultural já a partir dos anos 40. Na época, o desenhista Osamu Tezuka, influenciado principalmente pelos desenhos de Walt Disney e pelo cinema, criou a estética que caracteriza os quadrinhos japoneses até hoje.

Evangelion  Com a utilização de técnicas cinematográficas (alternância de planos e enquadramentos), a introdução de movimento nas histórias através de efeitos gráficos, com a criação de temas fantasiosos e personagens com olhos enormes e expressivos, ele revolucionou a forma de fazer quadrinhos. Sua primeira história com esta linguagem, “Shin Takarajima” (“Nova Ilha do Tesouro”), de 1947, ajudou a transformar o mangá em mania nacional no Japão e o consagrou como o “Deus” do gênero. São dele os clássicos que iniciaram várias gerações na leitura do mangá, como “Jungle Taitei” (“Kimba: O Leão Branco”), “Tetsuwam Atomu” (“Astro Boy”) e “Ribon no Kishi” (“A Princesa e o Cavaleiro”).

Inspirados em suas criações, toda uma geração de artistas japoneses surgiu, como Reiji Matsumoto (“Galaxy Express 999”, “Patrulha Estelar”, “Capitão Harlock”), Shotaro Ishinomori (“Kamen Rider”, “Cyborg 009”, “Go Ranger”) e a dupla Fujiko-Fujio (“Doraemon”, “Super Dínamo”). Esses "mangakas" (como são chamados os autores de mangá) contribuíram para o desenvolvimento das HQs japonesas e para a diversificação do público. Eles tornaram os mangás não só um enorme sucesso editorial, mas também um fenômeno cultural.

O mangá é coisa de gente grande no Japão. Apesar da queda nas vendas nos últimos anos, ele responde por 45% do mercado editorial do país. De acordo com o Instituto de Pesquisa de Publicações de Tóquio, em 2006 foram impressos 745 milhões de mangás que abordaram variados temas, como amor, violência, trabalho, escola, sexo, esporte, cultura, tecnologia, entre inúmeros outros (em 1995, chegaram a ser impressas 1,34 bilhão de cópias). Essa extrema segmentação faz com que ele atinja pessoas de todas as idades e classes sociais e transforma os mangás em uma poderosa forma de entretenimento, além de um importante meio de transmissão de cultura e informações.

Segundo a pesquisadora de mangás, Christine Akune Sato, “há duas divisões básicas no mercado de mangás no Japão: gênero e idade. Até os oito anos, basicamente meninos e meninas lêem o mesmo tipo de mangás. Após esta idade, ocorre a primeira grande segmentação de gênero. Os desenhos dos mangás para as meninas passam a ser mais delicados, os assuntos são mais românticos e até mesmo ‘novelizados’. Já o universo retratado nos mangás para meninos é muito parecido com o dos videogames”.

É somente entre os 20 e 30 anos que ocorre novamente outra importante segmentação. “Temas como casamento, família, saúde sexual começam a surgir nos mangás femininos. Os masculinos focam ainda mais em diversão e também surgem os eróticos. Após os 35 anos, a faixa de interesse novamente converge. Temas mais maduros como a criação de filhos, divórcio, desafios da aposentadoria passam a ser centrais nas histórias”, informa Sato.

Cavaleiros do Zodíaco  Alguns dos gêneros mais comuns, classificados segundo o público-alvo, são: o shogaku destinado às crianças, cheios de aventuras, lendas e humor; o shonen mangá, voltado para meninos adolescentes, com histórias de samurais e heróis que envolvem ação e aventura; o shoujo para as meninas, com temas mais sensíveis e românticos, embora possam envolver ação e aventura; o seinen para homens jovens e josei para mulheres; o hentai com foco sexual; o yuri, voltado para o público gay feminino; e o yaoi (ou Boys Love) que aborda o homossexualismo entre homens.

Rayearth Love Junkies

Além da enorme variedade de temas, contribui muito para a popularidade dos mangás o fato de serem baratos e conseqüentemente acessíveis a qualquer pessoa. Impressas em papel jornal, as revistas tem entre 300 e 800 páginas com várias séries e autores diferentes. Algumas chegam a uma tiragem de quatro milhões de exemplares, que depois de lidos são descartados. Somente as séries de maior sucesso, ou que atingem um determinado número de páginas, são relançadas em forma de livros de bolso colecionáveis. As histórias e personagens bem-sucedidos dos mangás têm ainda sobrevida garantida ao se transformarem em vários subprodutos, como animês, filmes, jogos, programas de TV, livros, brinquedos, CDs, peças de teatro, concursos de fantasia, o que movimenta uma milionária indústria de entretenimento no Japão. 

Conquistado o mercado japonês desde o início do século 20, faltava ainda aos heróis dos mangás invadirem outras praias. Os primeiros passos nesse sentido foram dados ainda nos anos 60 por Osamu Tezuka. Em 1962, ele teve a idéia de transportar suas histórias em quadrinhos do papel para as telas de TV. Transformou em primeira mão o mangá "Astro Boy" em animê (derivado do termo inglês animation, que significa desenho animado) e o vendeu para exibição nos Estados Unidos. Com o interesse despertado no público infantil americano, os mangás começaram a preparar o terreno para a invasão que ocorreria anos mais tarde em todo Ocidente.

Ragnarök  Mas foi na década de 70, graças ao sucesso econômico japonês, que além da filosofia empresarial e dos produtos eletrônicos, as artes marciais, o ikebana, o bonsai, o budismo e os animês passaram a despertar interesse no mercado Ocidental. Assim, com a anuência de papais e mamães, animações como “Robotech”, “Space Battleship Yamato”, “Manzinger”, “Devilman”, “Alps no Shojo Heidi” conquistaram toda uma geração de pequenos espectadores que se familiarizaram com a forma japonesa de contar histórias. Conquistado o público infantil, faltava, no entanto, chamar a atenção dos mais crescidinhos. Com o lançamento de “Patrulha Estelar”, de Leiji Matsumoto, nos anos 80, os animês chegariam lá. Com direção, enredo e trilha sonora diferenciados, a produção conseguiu cair no gosto também dos adolescentes e adultos, virando febre no mundo todo. Abria-se assim espaço para a invasão de outros animês e dos mangás.

Naruto  Mas curiosamente, quem mais contribuiu para que a bandeira dos mangás fosse fincada em terras estrangeiras não foi nenhum japonês. O norte-americano Frank Miller, um dos mais importantes desenhistas de comics, criou, em 1983, "Ronin". A história contava a saga de um samurai sem mestre, claramente inspirada no estilo dos mangás. Ele contribuiu também para que fosse traduzido pela primeira vez para o inglês o mangá “Kozure Okami” (“O Lobo Solitário”), abrindo espaço para a tradução de várias outras histórias japonesas não só nos Estados Unidos, como também na Europa. “Dragon Ball” e “Dr. Salump”, por exemplo, desbancaram as vendas dos comics e também dos quadrinhos nacionais europeus durante anos, deixando Batman, o Homem Aranha, Asterix e Tintim a ver navios.

Vampire Knight  Histórias que viraram foco de interesse ainda maior em 1988, quando foi lançada a versão cinematográfica do mangá “Akira”, de Katsuhiro Otomo. Sucesso tão grande que não chamou só a atenção do público. Abalados com a “vitória” do guerreiro de terras estrangeiras, os gigantes superpoderosos da indústria de comics, que até então reinavam absolutos, abriram os olhos para o Oriente. A Marvel, uma das grandes editoras norte-americanas de comics, por exemplo, contratou na época o autor de mangá Kia Asamiya para a produção de uma série do X-Men.

Holy Avenger  Nos anos 90, a batalha pela conquista de fãs pendeu para valer para o lado dos japoneses. Com a ajuda de um investimento de bilhões de dólares feito pela indústria cinematográfica japonesa, foram criados mais e melhores animês como “Dragon Ball Z”, “Pokémon”, “Néon Génesis Evangelion”, “Cowboy Bebop”, “Sailor Moon”, “Card Captor Sakura”, entre outros. Produções que não só aumentaram a base de espectadores em todo o mundo como também de leitores de mangá e de consumidores de toda uma gama de produtos derivados, criados a partir de então. O que transformou os mangás, os animês e seus subprodutos em um fenômeno cultural digno do avanço cultural americano ocorrido nos anos 50.

É, os superpoderosos heróis ocidentais que se cuidem, porque esta batalha parece estar longe de terminar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário