Raios com
potência nuclear
cortam os céus iluminando a cidade. Emanações de gelo congelam o ar.
Labaredas de fogo varrem a paisagem. Teias gigantescas são arremessadas
contra o território inimigo.
Uma cápsula de energia impenetrável protege
os heróis ocidentais de um possível contra-ataque. Do lado oriental,
imóveis, os guerreiros aguardam o ataque adversário. Em silêncio,
relembram todos os movimentos que compõem seus golpes mais poderosos.
Concentrados, manipulam a energia que permeia o universo não só para
bloquear os ataques. Usam-na para aumentar sua força interior a fim de
não temer seu destino. E partem para a ofensiva sem sequer abrir os
olhos.
Se essa batalha imaginária representasse a luta pela conquista de leitores no mundo todo entre as
histórias em quadrinhos ocidentais e as japonesas, os
mangás,
quem estaria ganhando? Em um primeiro momento, que aconteceu por volta
dos anos 50 do século 20, ajudados por uma poderosa indústria cultural,
encarregada de exportar a cultura americana, os quadrinhos ocidentais ou
comics invadiram o mundo de forma avassaladora. Sem dar a
menor chance de reação a qualquer oponente, conquistaram milhares de
leitores e influenciaram, com sua estética, os autores de quadrinhos de
todo o mundo, inclusive os japoneses.

Foi assim com o desenhista japonês
Osamu Tezuka,
o pai do mangá moderno. No início dos anos 60, ele incorporou alguns
dos elementos dos quadrinhos americanos ao mangá japonês. Mas, fazendo
jus à sabedoria milenar dos guerreiros de seu povo, aprendeu com o que
viu e ganhou força. O que surgiu como resultado estava longe der ser
apenas uma cópia. Ele criou algo novo, com características próprias que
passaram a diferenciar os quadrinhos japoneses dos
comics e de outras produções estrangeiras dali pra frente.

Ao produzir personagens com olhos imensos, inspirados nos desenhos de
Walt Disney, trouxe para o rosto a “responsabilidade” de expressar as
emoções e os pensamentos dos personagens. Ao lançar mão de técnicas
cinematográficas, criou enquadramentos inusitados e privilegiou o
movimento. Com ênfase na imagem ao invés do texto, como reflexo da
contemplativa tradição oriental, produziu uma estética inovadora. Ao
abordar temas não só de interesse para as crianças, abriu caminhos para
que toda uma geração de autores japoneses criasse variações. Inovações
não só gráficas, como também temáticas, que conquistaram públicos cada
vez mais amplos e variados. Fenômeno ainda sem paralelo no Ocidente.
Com uma enorme força no Japão, que se transformaria
no maior mercado editorial do planeta, o mangá iniciou então sua saga
rumo aos territórios estrangeiros. Disfarçado de mero entretenimento
infantil, invadiu, a partir dos anos 70, os lares em todo o mundo, em
forma de insuspeitáveis desenhos animados para crianças, os animês.
Ao conquistar gradativamente os corações e mentes infantis, acompanhou o
crescimento dos pequenos espectadores, que chegaram à adolescência já
seduzidos pela forma japonesa de contar histórias.
O mangá ganharia mais fãs nos
anos 80
ao penetrar em território estrangeiro com produções, tanto impressas
quanto animadas, com temas mais elaborados e voltados para o público
adolescente e adulto. Estratégia que, incorporada por uma desenvolvida
indústria de entretenimento no Japão, fez os animês explodirem mundo
afora na década de 90, surpreendendo como nunca os super-heróis
ocidentais. Personagens aparentemente invencíveis que agora tentam, a
todo custo, não só assimilar o golpe como também desvendar o segredo do
qual emana a força do mangá.

Estética que em pleno século 21 contribui para uma verdadeira invasão da
cultura pop japonesa no Ocidente. Território ocupado, onde a cada ano
milhões de revistas de mangá são vendidas. E as mais bem-sucedidas se
transformam em animês, que provocam uma verdadeira febre entre crianças,
adolescentes e adultos. Histórias e personagens que têm o poder ainda
de “transmutar-se” em
videogames,
brinquedos, figurinhas e todo tipo de produto que a imaginação e o
marketing puderem criar. Poder que, pelo menos por enquanto, parece
deixar a milenar arte guerreira japonesa em grande vantagem.
Os quadrinhos japoneses, assim como em outras culturas, utilizam texto e
imagem para contar uma história. Os primeiros registros desta forma de
arte no Japão são do século 11, quando o monge zen-budista Kakuyu Toba
imprimiu, em rolos de papel de arroz, uma sátira com personagens da
época. Durante os séculos seguintes, outras produções do mesmo estilo
surgiram por todo o país e tornaram-se populares. Mas o termo mangá, que
quer dizer “
desenhos irresponsáveis”, só surgiria no
século 19, criado por Katsushita Hokusai, gravurista de uma tipo de arte
feita em madeira chamada "ukyiyo-e". A partir de 1814, ele produziu uma
obra composta por 15 volumes com charges de conteúdo político e social,
chamando-a de "Hokusai Manga".

O termo mangá, no entanto, só foi usado para designar
histórias em quadrinhos
(com quadros seqüenciais, personagens fixos e histórias em série) em
1853, pelo desenhista Rakuten Kitazawa. Ao lançar o que seria
considerado o primeiro exemplar do gênero, a “Togosaku to Mokube no
Tokyo Kenbutsu” (“A Viagem de Togosaku e Mokube a Tóquio”), resgatou a
palavra e a tornou conhecida. A partir de então, influenciados por
jornais e revistas estrangeiros, principalmente europeus, toda uma
geração de desenhistas japoneses passou a produzir caricaturas sobre a
sociedade e os costumes da época. Atraíram com isso mais leitores e
tornaram os mangás bastante populares já nos anos 20. Na época, além de
histórias para adultos, os quadrinhos passaram a abordar também temas
infantis.

Mas o surgimento do mangá, com os elementos que o caracterizam hoje, só
ocorreu depois da Segunda Guerra Mundial. Época em que os Estados
Unidos, o grande vencedor do conflito, exportaram não apenas capital
para a reconstrução dos países destruídos pela guerra. Disseminaram
também produtos da cultura americana, entre eles os
comics, através da nascente indústria cultural já a partir dos anos 40. Na época, o desenhista
Osamu Tezuka,
influenciado principalmente pelos desenhos de Walt Disney e pelo
cinema, criou a estética que caracteriza os quadrinhos japoneses até
hoje.

Com a utilização de técnicas cinematográficas (alternância de planos e
enquadramentos), a introdução de movimento nas histórias através de
efeitos gráficos, com a criação de temas fantasiosos e personagens com
olhos enormes e expressivos, ele revolucionou a forma de fazer
quadrinhos. Sua primeira história com esta linguagem, “Shin Takarajima”
(“Nova Ilha do Tesouro”), de 1947, ajudou a transformar o mangá em mania
nacional no Japão e o consagrou como o “Deus” do gênero. São dele os
clássicos que iniciaram várias gerações na leitura do mangá, como
“Jungle Taitei” (“Kimba: O Leão Branco”), “Tetsuwam Atomu” (“Astro Boy”)
e “Ribon no Kishi” (“A Princesa e o Cavaleiro”).
Inspirados em
suas criações, toda uma geração de artistas japoneses surgiu, como Reiji
Matsumoto (“Galaxy Express 999”, “Patrulha Estelar”, “Capitão
Harlock”), Shotaro Ishinomori (“Kamen Rider”, “Cyborg 009”, “Go Ranger”)
e a dupla Fujiko-Fujio (“Doraemon”, “Super Dínamo”). Esses "mangakas"
(como são chamados os autores de mangá) contribuíram para o
desenvolvimento das HQs japonesas e para a diversificação do público.
Eles tornaram os mangás não só um enorme sucesso editorial, mas também
um fenômeno cultural.
O mangá é coisa de gente grande no Japão. Apesar da queda nas vendas nos
últimos anos, ele responde por 45% do mercado editorial do país. De
acordo com o Instituto de Pesquisa de Publicações de Tóquio, em 2006
foram impressos 745 milhões de mangás que abordaram variados temas, como
amor, violência, trabalho, escola, sexo, esporte, cultura, tecnologia,
entre inúmeros outros (em 1995, chegaram a ser impressas 1,34 bilhão de
cópias). Essa extrema segmentação faz com que ele atinja pessoas de
todas as idades e classes sociais e transforma os mangás em uma poderosa
forma de entretenimento, além de um importante meio de transmissão de
cultura e informações.
Segundo a pesquisadora de mangás,
Christine Akune Sato, “há duas divisões básicas no mercado de mangás no
Japão: gênero e idade. Até os oito anos, basicamente meninos e meninas
lêem o mesmo tipo de mangás. Após esta idade, ocorre a primeira grande
segmentação de gênero. Os desenhos dos mangás para as meninas passam a
ser mais delicados, os assuntos são mais românticos e até mesmo
‘novelizados’. Já o universo retratado nos mangás para meninos é muito
parecido com o dos
videogames”.
É
somente entre os 20 e 30 anos que ocorre novamente outra importante
segmentação. “Temas como casamento, família, saúde sexual começam a
surgir nos mangás femininos. Os masculinos focam ainda mais em diversão e
também surgem os eróticos. Após os 35 anos, a faixa de interesse
novamente converge. Temas mais maduros como a criação de filhos,
divórcio, desafios da aposentadoria passam a ser centrais nas
histórias”, informa Sato.

Alguns dos gêneros mais comuns, classificados segundo o público-alvo, são: o
shogaku destinado às crianças, cheios de aventuras, lendas e humor; o
shonen mangá, voltado para meninos adolescentes, com histórias de
samurais e heróis que envolvem ação e aventura; o
shoujo para as meninas, com temas mais sensíveis e românticos, embora possam envolver ação e aventura; o
seinen para homens jovens e
josei para mulheres; o
hentai com foco sexual; o
yuri, voltado para o público gay feminino; e o
yaoi (ou
Boys Love) que aborda o
homossexualismo entre homens.
Além da enorme variedade de temas, contribui muito para a popularidade
dos mangás o fato de serem baratos e conseqüentemente acessíveis a
qualquer pessoa. Impressas em papel jornal, as revistas tem entre 300 e
800 páginas com várias séries e autores diferentes. Algumas chegam a uma
tiragem de quatro milhões de exemplares, que depois de lidos são
descartados. Somente as séries de maior sucesso, ou que atingem um
determinado número de páginas, são relançadas em forma de livros de
bolso colecionáveis. As histórias e personagens bem-sucedidos dos mangás
têm ainda sobrevida garantida ao se transformarem em vários
subprodutos, como animês, filmes, jogos, programas de TV, livros,
brinquedos, CDs, peças de teatro, concursos de fantasia, o que
movimenta uma milionária indústria de entretenimento no Japão.
Conquistado o mercado japonês desde o início do século 20, faltava ainda
aos heróis dos mangás invadirem outras praias. Os primeiros passos
nesse sentido foram dados ainda nos anos 60 por
Osamu Tezuka.
Em 1962, ele teve a idéia de transportar suas histórias em quadrinhos
do papel para as telas de TV. Transformou em primeira mão o mangá "Astro
Boy" em
animê (derivado do termo inglês
animation,
que significa desenho animado) e o vendeu para exibição nos Estados
Unidos. Com o interesse despertado no público infantil americano, os
mangás começaram a preparar o terreno para a invasão que ocorreria anos
mais tarde em todo Ocidente.

Mas foi na década de 70, graças ao sucesso econômico japonês, que além
da filosofia empresarial e dos produtos eletrônicos, as artes marciais, o
ikebana, o bonsai, o budismo e os animês passaram a despertar interesse
no mercado Ocidental. Assim, com a anuência de papais e mamães,
animações como “Robotech”, “Space Battleship Yamato”, “Manzinger”,
“Devilman”, “Alps no Shojo Heidi” conquistaram toda uma geração de
pequenos espectadores que se familiarizaram com a forma japonesa de
contar histórias. Conquistado o público infantil, faltava, no entanto,
chamar a atenção dos mais crescidinhos. Com o lançamento de “Patrulha
Estelar”, de Leiji Matsumoto, nos
anos 80,
os animês chegariam lá. Com direção, enredo e trilha sonora
diferenciados, a produção conseguiu cair no gosto também dos
adolescentes e adultos, virando febre no mundo todo. Abria-se assim
espaço para a invasão de outros animês e dos mangás.

Mas curiosamente, quem mais contribuiu para que a bandeira dos mangás
fosse fincada em terras estrangeiras não foi nenhum japonês. O
norte-americano Frank Miller, um dos mais importantes desenhistas de
comics, criou, em 1983, "Ronin". A história contava a saga de um
samurai
sem mestre, claramente inspirada no estilo dos mangás. Ele contribuiu
também para que fosse traduzido pela primeira vez para o inglês o mangá
“Kozure Okami” (“O Lobo Solitário”), abrindo espaço para a tradução de
várias outras histórias japonesas não só nos Estados Unidos, como também
na Europa. “Dragon Ball” e “Dr. Salump”, por exemplo, desbancaram as
vendas dos
comics e também dos quadrinhos nacionais europeus durante anos, deixando
Batman, o
Homem Aranha, Asterix e Tintim a ver navios.

Histórias que viraram foco de interesse ainda maior em 1988, quando foi
lançada a versão cinematográfica do mangá “Akira”, de Katsuhiro Otomo.
Sucesso tão grande que não chamou só a atenção do público. Abalados com a
“vitória” do guerreiro de terras estrangeiras, os gigantes
superpoderosos da indústria de
comics, que até então reinavam absolutos, abriram os olhos para o Oriente. A
Marvel, uma das grandes editoras norte-americanas de
comics, por exemplo, contratou na época o autor de mangá Kia Asamiya para a produção de uma série do X-Men.

Nos anos 90, a batalha pela conquista de fãs pendeu para valer para o
lado dos japoneses. Com a ajuda de um investimento de bilhões de dólares
feito pela indústria cinematográfica japonesa, foram criados mais e
melhores animês como “Dragon Ball Z”, “Pokémon”, “Néon Génesis
Evangelion”, “Cowboy Bebop”, “Sailor Moon”, “Card Captor Sakura”, entre
outros. Produções que não só aumentaram a base de espectadores em todo o
mundo como também de leitores de mangá e de consumidores de toda uma
gama de produtos derivados, criados a partir de então. O que transformou
os mangás, os animês e seus subprodutos em um fenômeno cultural digno
do avanço cultural americano ocorrido nos anos 50.
É, os superpoderosos heróis ocidentais que se cuidem, porque esta batalha parece estar longe de terminar.
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